Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
De repente e sem que possamos fazer nada, a loucura instala-se. Primeiro timidamente e quando nos apercebemos corrói as entranhas e destrói tudo o que está por perto.
Mas qual o conceito de loucura, qual a barreira entre esta e a sanidade mental? A resposta a esta pergunta ainda não foi encontrada e desde a Idade Média que se discute este conceito.
Quantas pessoas teriam sido queimadas, julgando-as possuídas por demónios, quando o motivo de todo os comportamentos estranhos era a demência, em todas as vertentes.
A Renascença viu surgir uma nova e estranha figura ao longo dos canais flamengos e dos rios da Renânia: a Nau dos loucos. Naquela época, os loucos tinham uma existência errante. Escorraçados das grandes cidades, expulsos de suas fortificações e condenados à peregrinação, foi-se firmando o costume de confiá-los, também, aos barqueiros. Esse costume era frequente particularmente na Alemanha: em Nuremberga, durante a primeira metade do século XV, registou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados.
Desta prática surgia a certeza de que os insanos iriam para longe o que - nas palavras de Foucault - os tornava prisioneiros de sua própria partida. É o mesmo autor quem assinala o carácter simbólico da atitude: "a navegação entrega o homem à incerteza da sorte; nela, cada um é confiado ao seu próprio destino; todo o embarque é, potencialmente, o último. É para outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca".
Ainda hoje, o imaginário social sobre a loucura se concebe no interior de uma embarcação. Tudo se passa como se os que experimentaram sofrimentos psíquicos fossem, eles mesmos, navios à deriva aos quais seria preciso oferecer o competente comando. Coube à razão, em sua dimensão instrumental, a tarefa de oferecer um determinado discurso "científico" com o qual foram erguidos sólidos portos para a loucura. Como nas docas, estas construções foram ladeadas por muros e situadas à margem das cidades.
Desde as antigas leprosarias, transformadas em manicómios na Idade Média, até às modernas clínicas psiquiátricas, muitos foram os "navios sofredores" que atracaram para nunca mais... deles, já não temos notícias.
Os marinheiros deixavam em terra, esses passageiros incómodos.
Não é fácil descobrir o sentido exacto deste costume. Pensa-se que se tratava de uma medida geral de expurgo que as municipalidades faziam incidir sobre os loucos em estado de vagabundagem; hipótese que por si só não dá conta dos factos, pois certos loucos, antes mesmo de serem construídas casas especiais para eles, eram recebidos nos hospitais e tratados como tal.
No Hôtel- Dieu de Paris, os seus leitos eram colocados em dormitórios; por outro lado, na maior parte das cidades da Europa existiram, ao longo de toda a Idade Média e da Renascença, um lugar de detenção reservado aos insanos - é o caso do Châtelet de Melun ou da famosa Torre dos Loucos de Caen; são as inúmeras Narrtürmer da Alemanha, tal como as portas de Lübeck ou o Jungpfer de Hamburgo. Portanto, os loucos não são corridos das cidades de modo sistemático. Supõe-se que eram escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta somente daqueles que são seus cidadãos.
Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou donativos feitos em favor dos insanos.
Na verdade, o problema não era tão simples assim, pois havia pontos de onde os loucos, mais numerosos que em outras partes não eram autóctones. Em primeiro lugar, surgem os lugares de peregrinação: em Saint-Mathurin de Larchant, em Saint-Hildvert de Gournay, em Besançon, em Gheel: estas peregrinações eram organizadas e às vezes subvencionadas pelas cidades ou pelos hospitais.
O meu filho cresceu com um estigma enorme, a perda do Pai, ainda muito criança; com apenas 4 anos ficou sem a referência paterna que, no caso dos rapazes é uma referência padrão.
Não sei se esse facto associado a outras perdas quase seguidas que ele vivenciou o atiraram para a doença terrível - TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que anos mais tarde quase o destroçou; é, como o nome indica, uma doença do foro psiquiátrico que se traduz por distúrbios a nível cognitivo e comportamental.
O doente é “levado a fazer” coisas e tomar atitudes que não quer, sendo compelido a fazê-lo precisamente porque, em determinado hemisfério do seu cérebro, há como que um desligar de fios que o retiram da realidade e o põem num mundo só deles.
Apesar de ter sido ele a primeira vítima, toda a família sofreu na pele os horrores a que a patologia sujeita os seus portadores.
As manias e os rituais sucedem-se a um ritmo alucinante e os doentes têm de os cumprir sob pena de não terem sossego e ficarem a pensar nisso horas e dias seguidos.
Durante a infância notei que o meu filho, ficava triste de repente e no meio de uma brincadeira o seu olhar tornava-se vago e distante. Cheguei mesmo a consultar o seu pediatra que me disse ser normal uma vez que tinha sido confrontado com a perda do Pai. Anos mais tarde soube que se fosse tratado por um especialista, talvez não chegasse tão longe…
Soube ainda que, na adolescência, não podia sair da varanda da nossa casa sem que tivesse visto passar na rua determinado número de carros de determinada marca o que fazia com que muitas vezes nem à casa de banho se pudesse deslocar.
Foi escondendo toda essa sintomatologia, até que muitos anos depois, já adulto, comecei a notar comportamentos muito estranhos como agrupar moedas em pequenos montes, não se desfazer de jornais velhos, embalagens de bolachas, chocolates, sumos sapatos e outros objectos pessoais que já não usava.
A par de tudo isto, nunca respeitava as horas de chegada a qualquer lado que combinávamos e recusava-se a mudar de trajecto na rua, tinha de passar sempre pelos mesmos locais dos dias anteriores, isto é, tinha de respeitar as rotinas e os rituais começaram a aparecer em força, o que originava discussões entre nós, irritando-me a sério com tanta “irresponsabilidade”; mas era já a doença a manifestar-se a todo o vapor.
Esta situação foi-se arrastando até que chegamos ao fim da linha, os rituais sucediam-se de forma muito acelerada e entrámos numa fase que para mim foi das piores, ligava e desligava vezes sem conta o frigorífico, acabando por o estragar, a televisão, e todas as luzes. A par destas situações, foi o abandono físico completo, não se cuidava, não mudava de roupa, dizendo que o simples facto de o fazer era como se lhe arrancassem a própria pele. Não tínhamos sossego naquela casa que se foi transformando num sítio de terror, quando se aproximava a hora de regressar a casa, depois de um dia intenso de trabalho, as pernas recusavam-se a andar, foi terrível!
Aconteceu entrar-me no meu quarto e pedir que desligasse a luz e a televisão pois não suportava ouvir determinadas palavras que eram ditas, uma das que o afligia era PRAZER, sempre que a ouvia tinha de repetir tudo o que tinha feito até então; relembro um episódio nos HUC (Hospital Universitário de Coimbra), para onde foi internado, e ter feito o médico que o tratava estar determinado tempo com ele até passar o efeito da palavra que o médico tinha pronunciado.
Para infelicidade dele ouvia-a muitas vezes ao dia, pois é usada socialmente como todos sabemos.
Quando as forças, físicas e emocionais começaram a falhar-me e já não sabia como havia de lidar com tal situação, internei-o compulsivamente no Hospital Psiquiátrico de Magalhães Lemos, no Porto, onde permaneceu oito meses.
Infelizmente os métodos lá utilizados são já obsoletos e nada apropriados para o problema específico do meu doente, que piorou a olhos vistos, estava magríssimo, não se alimentava e contactava com doentes mentais profundos, o que o perturbava imenso.
Acresce a tudo isto o facto dos médicos se limitarem a sedar os pacientes, tendo-os praticamente ali depositados, não individualizando cada caso e dando a mesma medicação para todos.
O próprio internamento era degradante, os doentes passeavam-se pelos corredores como animais enjaulados, não podendo sair à vontade, com as portas sempre fechadas à chave. Devo, contudo, referir que as instalações são boas, boas infra-estruturas, piscina, salas de actividades para os doentes, o terreno circundante do edifício hospitalar é enorme e muito aprazível, simplesmente nada funciona porque não há dinheiro para a manutenção, um problema bem português, o dinheiro é empregue em tudo menos no essencial e a saúde continua muito deficitária, não se respeitando os doentes na sua dignidade de pessoas de pleno direito.
Em várias conversas com o médico que o tratava, constatei que a doença era praticamente desconhecida, em termos de tratamento e como o caso dele era grave e crónico, mais difícil se tornava.
Comecei a ficar muito preocupada com o estado dele a agravar-se a olhos vistos e, um dia, vendo um site na Internet sobre intervenções feitas com sucesso em doentes de Alzheimer, no Hospital de S. João, resolvi pedir ajuda ao Prof. Rui Vaz, Director de Neurocirurgia do mesmo hospital. Não o conhecia pessoalmente mas, mesmo assim, resolvi correr o risco e expor-lhe o caso. Foi de uma amabilidade e de uma humanidade enormes, qualidades raras num médico e imediatamente se disponibilizou para entrar e contacto com um colega do Hospital Universitário de Coimbra, HUC, chegando mesmo a dar-
-me o número de telemóvel pessoal para o contactar dias depois para dar-me uma resposta. Numa semana tinha o meu filho internado em Coimbra. Jamais esquecerei tal atitude e ser-lhe-ei grata para sempre, ao ter-me aberto o caminho para poder solucionar o grave problema que estávamos a viver.
A transferência de hospital obedeceu aos trâmites normais e legais e em pouco mais de uma semana começou então a ser tratado pela excelente equipa dos HUC a quem agradeço toda a dedicação e competência.
Verifiquei de imediato que o HUC funcionava de maneira totalmente diferente do Hospital de Magalhães Lemos, se não o soubesse não diria que estava num internamento de psiquiatria, os doentes passeavam à vontade, interagiam com os enfermeiros, as portas não tinham fechaduras, os métodos de tratamento eram opostos aos praticados no congénere do Porto.
Verifiquei ainda que o HUC tem uma equipa conceituada, vocacionada para este tipo de doença, pondo em prática tratamentos e psicoterapia associada, a par do que se faz nos melhores hospitais da América ou Inglaterra.
Não há prevenção para a doença e após variados estudos sobre a mesma, nada foi descoberto, provavelmente porque em Portugal e, mesmo a nível mundial, não há ainda muitos doentes TOC (2 a 3% ); daí um deficit grande em matéria de tratamento e até de conhecimento a tal respeito. É também muito comum associar a demência pura a este tipo de doença, o que é completamente falso.
Estes doentes podem ter o outro hemisfério cerebral completamente são e podem ser pessoas com cursos superiores e todo o tipo de trabalho, intelectual ou outro.
Iniciou-se então uma psicoterapia aliada a tratamento oral com químicos actuando a nível cerebral e que devem ser feitos em simultâneo. Muitos outros, com menor sintomatologia, conseguem com medicação química e psicoterapia fazer uma vida normal.
A estes doentes é ministrada psicoterapia aliada a tratamento oral com químicos actuando a nível cerebral e que devem ser feitos em simultâneo.
A psicoterapia era feita individualmente, a nível cognitivo e comportamental, por mais de uma terapeuta.
Só psicoterapia sem fármacos não resulta. A psicoterapia pode ser feita em grupo ou individualmente, dependendo do estado do doente.
Certa vez, durante uma visita que lhe fiz ao hospital, a terapeuta contou-me que após o tratamento, ele desfazia tudo o que havia sido falado na reunião para poder voltar aos rituais que o continuavam a atormentar, isto é, vi com os meus olhos que ele continuava a guardar debaixo da cama várias embalagens de produtos que ia consumindo.
Os tratamentos começaram então a tornar-se infrutíferos e os médicos começaram a ficar frustrados com todo o processo, pois apostaram em métodos mais modernos e adequados àquela patologia e o resultado em termos de melhoras era muito pouco visível.
Durante o período de internamento nos HUC, que ultrapassou um ano, em quadras festivas o doente vinha a casa, sendo depois muito difícil tornar a colocá-lo lá, fazia imensa chantagem emocional do tipo “vim no dia tal, só posso regressar em tal dia” etc, obrigando muitas vezes a internamentos compulsivos, nessas ocasiões era a ambulância que o transportava do Serviço de Urgência do Hospital de S. João no Porto até Coimbra.
Foi então que a equipa que o tratava começou a pensar na intervenção cirúrgica, Estimulação Cerebral Profunda.
O Hospital Universitário de Coimbra está a fazer um trabalho pioneiro e ainda experimental com estes doentes, sendo feita uma cirurgia chamada estimulação cerebral profunda onde são colocados eléctrodos no cérebro posteriormente controlados, via externa, por uma espécie de pacemaker colocado subcutaneamente na região torácica.
Esta cirurgia foi iniciada com sucesso pelo emérito cirurgião belga, Dr. Bart Nuttin, que implantou esse intervenção nos HUC e à qual o hospital tem respondido com muito sucesso. Há casos de melhoria pós intervenção na ordem dos 80%, isto é, o doente fica capaz de levar uma vida normal, sujeito a medicamentação durante mais ou menos um ano, diariamente, e depois com regularidade que a evolução vai ditando.
Ainda foram feitas poucas destas cirurgias tão específicas (especiais, particulares, peculiares) pois a maioria dos doentes cede aos tratamentos de psicoterapia e medicação associada.
A OMS (organização Mundial de Saúde) teve de dar consentimento para ser submetido à intervenção, uma vez que foi refractário a todo e qualquer tipo de intervenção medicamentosa ou outra e a operação foi a única alternativa.
Estes procedimentos devem-se ao facto da intervenção ser muito cara e só ser feita quando não há mais nenhuma alternativa possível. Para fazer uma ideia, basta dizer que cada um dos eléctrodos que foram colocados no cérebro, custaram 25 000€. A equipa médica mandou à OMS um relatório muito completo do historial do doente, e todo o tratamento associado a que foi submetido durante o período de internamento.
Chegou finalmente o Dia D – 9 de Junho de 2008, o dia mais longo e mais doloroso da minha vida, o da intervenção do meu filho nos HUC.
Durante as várias horas da operação, o meu coração de Mãe só pedia a Deus que o libertasse de tal suplício e que corresse tudo da melhor forma.
Felizmente foi um sucesso, com o pós-operatório a correr sem problemas de qualquer espécie.
<a href="http://fotos.sapo.pt/motite/fotos/?uid=7HQuP1I1uipSc5i8sZIT" target="_blank" title="cerebro"><img border="0" alt="cerebro" src="https://fotos.web.sapo.io/i/Be1018dde/5041296_giI5r.jpeg" /></a>