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Não dona, desculpe mas quem vai falar de mim sou eu e vou contar a nossa história.
Chamo-me Cascais, porque a dona me encontrou precisamente muito perto, na praia do Tamariz, daí o ficar assim batizado.
Pelas minhas contas devo ter 12, 13 anos, um cão de meia idade portanto, não é assim com os humanos?
Quando a dona me encontrou, lembro-me bem, era Verão e estava com uma gastrite, assim o afirmou o veterinário que me tratou com todo o desvelo e carinho. Devia ter sido este o motivo pelo qual o meu antigo dono me dispensou, abandonando-me à minha sorte, andando a vaguear pela praia.
Como os homens são cruéis, os da minha espécie estão constantemente a dar-lhes lições no que respeita a lealdade, amizade sincera e total dedicação. E os irracionais somos nós?
Quando aquela senhora se aproximou de mim, percebi de imediato que gostava de animais pelos mimos que me deu e pensei que talvez tivesse encontrado uma amiga, ou quem sabe uma dona.
Quando somos pequenos e servimos de brinquedos para a família tudo corre bem, o pior é com o passar do tempo e, ao primeiro sinal de velhice ou doença, somos abandonados. Foi o que me sucedeu quando me deixaram naquela bonita praia do Tamariz. Fazia pela vida esperando que alguma coisa de comer me chegasse, de tantas esplanadas que por ali há. Mas geralmente nada acontecia
Uns dias corriam melhor que outros, quando me davam miminhos e palavras ternas vindas das crianças, que me achavam graça e de quem sou amigo:
- Oh mamã, olha que lindo cãozinho, vamos levá-lo? Os pais sorriam para os filhotes, seguiam o seu caminho e lá ficava eu de olhos tristes à espera de outro dia.
Mas voltemos ao meu encontro com a minha dona. Foi amor à primeira vista, recíproco, nunca mais nos largamos. A dona estava a passar férias em casa de uma tia, uma velhinha muito querida que me recebeu com todo o amor e se rendeu aos meus encantos. Ainda hoje sinto o cheiro de um arroz de galinha que me preparou, que delícia. Isto porque eu dei sinais de que estava doente, havia grande reboliço na minha barriga e pouca vontade tinha de comer.
Fui ao veterinário que me diagnosticou uma gastrite e me tratou durante todo o tempo que estive em Cascais, era sempre o primeiro doente a ser atendido, pois o Sr. Dr. Amigo dizia que precisava de ir para a praia porque a dona regressaria ao Porto, cidade onde vive, passado pouco tempo.
Achavam imensa graça ao ter o mesmo nome da terra e depois das explicações desse facto, eu era o talismã nas redondezas, sempre que entrava no café junto da clínica onde era tratado logo diziam:
- Olha aí vem o Cascais, como isto me fazia bem ao ego e me sentia querido e especial.
Ainda não revelei mas, apesar de rafeiro, sou muito bonito, sou castanho escuro com as patas brancas a que a dona chama de meias, uns olhos castanhos de uma ternura infinita, a doninha está sempre a gabar os meus olhos, diz que são os mais belos do mundo, coisas de dona... mas a verdade é que tenho o meu charme.
Ah, já me ia esquecendo de dizer que devo ter tido algum parente mais afastado, quem sabe bisavô ou outro, rotweiller, pois tenho debaixo da cauda aquele desenho tão caraterístico da raça e as bolinhas em cima dos olhos. Quem sabe algum devaneio do meu Pai?!
Depois da praia descansava e à noite, quando minha dona saía para ouvir uma música e beber um café, eu fazia companhia à tia, a tal velhota amorosa, e como amor com amor se paga, ficava deitado aos seus pés a fazer-lhe companhia.
Muitas vezes acompanhava os meus donos , a minha doninha tem um filho que também me adora, e lá íamos até uma esplanada onde me portava com muito juízo, ficando a admirar quem passava.
Uma noite fui à Feira Popular, aí é que me diverti...os humanos riam e divertiam-se, também encontrei alguns amigos de 4 patas com quem confraternizei e estava sempre atento aquele cheirinho que vinha das barracas dos comes e bebes. Se eu pudesse roubar umas sardinhitas, ou um entrecosto, pensava eu, mas com os donos a fardarem-me era uma missão impossível.
Quando regressamos ao Porto adaptei-me logo à vida e ao ambiente da casa da minha dona.
Ela está constantemente a falar comigo e eu sigo-a para todo o lado.
Estamos juntos há 10 anos, tempo suficiente para nos conhecermos e nos compreendermos muito bem.
Sei quando está triste ou preocupada, pois quando tarda em conversar comigo, logo faço questão de lhe lembrar a minha presença com uma pata estendida em sua direção ou um "au, au" mais convincente e cuja tradução é: estou aqui, dona.
Talvez por ter sido abandonado sou bastante carente e adoro que me prestem atenção, preciso de sentir-me amado, não será o que todos os seres vivos querem?
Não tenho razão de queixa pois desde sempre nunca me faltou carinho, amor e toda a compreensão pelas asneiras que fazia, como gostava de roer as maçanetas das gavetas que estavam ao meu alcance, roer o saco do lixo.
Sempre que os donos chegavam a casa e eu tinha feito alguma asneirita, ficava muito comprometido, olhando de lado para eles numa atitude de grande submissão, mas com o meu olhar meigo lá lhes dava a volta.
Agora o tempo começa aa pesar e quando estou deitado na varanda ao sol, penso na minha vida, da idade que vai avançando, da falta de visão que começo a ter, da tranquilidade que aprecio, das sonecas que faço na cama da dona, como eu adoro ir para a cama dela, é tão bom, da falta de ouvido pois já não me apercebo tão bem quando a dona entra em casa, dantes mal ouvia a chave na porta, saltava logo para lá para a receber.
Continuam a dizer que sou muito querido apesar da idade, deve ser pela qualidade de vida que me dão e do amor sempre presente. Por falar em amor, adoro crianças, sinto por elas muita ternura.
Vou contar um episódio passado comigo que prova isso mesmo. Num dia de festa em que havia um fogo de artifício grande, encontrei uma menina bastante pequena que ainda andava mal e, que mal me avistou, se chegou a mim, mas ao mesmo tempo estava um tanto receosa, fechava os olhitos e não sabia muito bem o que fazer. Se falasse, ter-lhe-ia dito:
- Fica tranquila, eu ado crianças, assim dei-lhe uma lambidela na mãozinha que me estendeu e que traduziu o que sentia. Foi uma cena linda entre dois "meninos".
Tive continuo a ter uma vida feliz. Passei por alguns percalços, salvei a minha dona de apuros, numa noite de inverno impedindo de ser assaltada, pois fiz tanto barulho, ladrei tanto e tão alto que afugentei o intruso. Esta tendência de Sherlock Holmes canino deve-se ao facto de ser um cão de caça - coelheiro. não consigo ver um buraco, que vou logo investigar.
Tive uma amiga de brincadeira, a Pantufa, uma gatinha simpática que jávivia com a dona e que a princípio me estranhou, só quando estava a dormir ela se aproximava, cheirava-me e... eu dava conta de tudo e ficámos grandes amigos.
Também tinha o Guga, um Labrador preto que vivia em frente a mim. De manhã saía com a dona, uma moça giraça que cheguei a pensar ser uma boa namorada para o meu dono, devem ter a mesma idade e ficava tudo em família.
Como a minha vida agora é mais pacata sei das fofocas todas da vizinhança e dos mexericos locais. Os humanos é que são mais dados a estas coisas. Sempre que há um pretexto lá estão eles a discutir o último namorado da vizinha, o novo penteado da do 4º Dtº, a última aquisição automóvel do vizinho da frente.
Enquanto faço a s minhas sonecas tenho sempre a orelhita levantada para o que der e vier, ou seja, para ficar ao corrente do que se passa por cima do meu focinho.
Engraçado, estou a envelhecer juntamente com a minha dona, as mazelas são as mesmas: falta de de paciência, os sentidos a falharem, ambos temos cataratas.
A velhice é triste, para todos, humanos e nós animais.
Resta-nos a companhia um do outro e o relembrar de coisas boas que vivemos em conjunto. Restam-nos as memórias e o amor temos um pelo outro.
Amo-te dona, obrigado por teres aparecido na minha vida.
Cascais
O meu querido amigo partiu em Agosto do ano passado. Todos os dias o lembro e o choro.
Obrigada amigo!